segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O uso da taipa nas igrejas e outras construções



A construção em terra encontra-se em todo o mundo. Onde quer que falte pedra ou madeira, a solução é a utilização da terra.
E, ao contrário, do que se pode pensar, olhando à modéstia ou relativa modéstia da realidade portuguesa, existem grandes edifícios e cidades inteiras construídas em terra.
Uma ideia também aventada regularmente é a de que a construção em terra foi introduzida na Península Ibérica durante a ocupação islâmica, que aqui teria reproduzido este processo construtivo à semelhança da realidade árabe e berbere. Trata-se de mais um lugar-comum sem qualquer consistência histórica.
Naturalmente o período islâmico na Península continuou uma tradição muito mais antiga no mundo mediterrânico, embora os construtores árabes pudessem ter melhorado algumas técnicas, como no caso da taipa militar, em que à terra adicionavam cal, edificando castelos que ainda hoje sobrevivem.
A construção em terra remontará a antigas épocas da pré e da proto-história, quando o homem necessitou de abrigos cada vez mais elaborados e eficazes, em que utilizavam os materiais de que dispunham na natureza. A arqueologia tem confirmado esta afirmação.
Em Portugal, o Sul é por excelência a área da utilização da terra como material de construção, embora em todo o País se possa encontrar essa solução construtiva. Evidentemente, no Sul também existe construção em pedra, mesmo em simples moradias e até em construções de mais desqualificada função como estábulos e armazéns.
A alvenaria de pedra e cal e de pedra e barro é portanto também frequente. A pedra é geralmente o xisto, a rocha mais abundante no sudoeste português, e a argamassa o barro, na falta de cal. Efectivamente, não existem aqui terrenos calcários e a cal tem de vir de fora e fica, portanto, cara. Um exemplo da dificuldade em obter esse produto: em 1687, uma carreta foi de Alvalade buscar uma carrada de cal a Milfontes: a cal custou cinco tostões, quantia que naturalmente incluía o frete marítimo; o transporte até Alvalade ficou em 12 tostões. Total: 17 tostões (1700 réis). Mais caro o transporte que o produto.
Por isso, a ideia de um Alentejo, todo ele, branquejando de cal na planície não convém a todo o Alentejo. Lugares havia, sobretudo em zonas de maiores influências de uma tradição mais serrana, com taipas e alvenarias de xisto sem reboco de cal e areia, em que muitas das casas, principalmente as que eram construídas de pedra e barro, ofereciam um aspecto escuro, que justificava topónimos como Casa Branca que significavam nessas áreas a escassa presença de casas brancas.
A construção em terra é realizada com três técnicas: a taipa, o adobe e o tabique. Falaremos apenas na primeira, como nos foi proposto.
Basicamente, a construção em taipa baseia-se no enchimento e compactamento com terra previamente molhada de um espaço entre taipais, como uma cofragem, que em camadas sucessivas, e desencontradas para obter travamento, iam edificando as paredes. Em geral, os caboucos eram de pedra até cerca de meio metro para evitar a acção da humidade ascendente. Com efeito, um dos pontos fracos da taipa é a humidade e a falta de protecção de um reboco, que se fazia de uma argamassa de cal e areia. Por isso, a taipa é uma solução que também tem uma envolvente climática, uma vez que é mais apropriada para áreas menos pluviosas.
Para dar mais consistência aos edifícios, construíam-se por vezes contrafortes, os moirões, que impediam desequilíbrios das paredes. Os moirões eram também usados nas edificações de pedra.  
Por outro lado, a qualidade da taipa dependia também da matéria-prima: terra mais ou menos argilosa, mistura maior ou menor de saibro, etc. Depois também dependia dos taipeiros: dizia-se popularmente que devia ser “transportada por um coxo e batida por um louco”, significando a lentidão que era necessária para consolidação da taipa e a energia exigida a quem tinha o trabalho de usar o pilão para compactar bem a terra.
No antigo concelho de Alvalade, há notícias documentais de construção em taipa. As visitações quinhentistas da Ordem de Santiago referem-na, embora, em geral, as igrejas, especialmente as matrizes, o principal objecto dessas inspecções, fossem, como edifícios de prestígio, em alvenaria de pedra e cal ou pedra e barro, até porque os mestres seriam muitas vezes de fora.
É interessante a menção à técnica da taipa em igrejas como a de Alvalade, vila que viu a sua matriz reedificada em tempo de D. Manuel, decerto com a intervenção do comendador da Ordem de Santiago. Os visitadores desta última, em 1510, ao descreverem a igreja matriz, diziam que “a qual capela (mor) é de abóbada, e todas as paredes são de tijolo e cal [… ] O arco principal da dita capela é todo de tijolo e cal […] a sacristia é de abóbada e as paredes são de taipa com formigão de tijolo e cal […] O corpo da igreja é de uma só nave com três arcos de tijolo, sobre os quais está madeirada e olivelada de madeira de castanho e pinho, e é mui bem telhada e cintada de cal, e as paredes são de taipa com alicerces de pedra e cal e formigões de tijolo com face de cal de dentro e de fora”.
Apesar da referência à taipa, estas passagens precisam de ser esclarecidas. Na verdade o termo formigão significa um tipo de construção semelhante à taipa, mas em que a terra é substituída por cal hidráulica, fazendo uma argamassa de grande consistência e durabilidade. Já os romanos utilizaram esta técnica para obterem massas tão duras como o cimento e mais duráveis (o opus signinum).
No caso concreto, parece, pela redacção do visitador, que o termo formigão se distingue da taipa. Provavelmente, o que o visitador queria dizer era que a taipa de formigão tinha mistura de cal e tijolo, ou cal e cerâmica, como vemos por exemplo no opus signinum romano da fase tardia. 
Estamos perante uma matriz, em que foram aplicados meios financeiros de algum vulto. Daí a presença da cal bem como de cantarias. Não é referido o portal principal, de cantaria lavrada, manuelino, que hoje podemos apreciar, mas trata-se estilisticamente de um portal daquela época. As abóbadas da capela-mor e da sacristia também revelam os cuidados em dar à igreja uma maior dignidade.
Segundo o mesmo documento, quase todos os restantes templos do termo de Alvalade, a maior parte modestas ermidas, eram edificados em terra. Sem o peso de abóbadas, a taipa era a melhor e mais barata solução para as paredes.
O hospital do Espírito Santo tinha três casas, uma dianteira e duas câmaras para os pobres; as paredes, de taipa, e a cobertura de telha vã.  
A ermida de S. Pedro, uma simples casa sem distinção de ousia e corpo, era também de taipa, coberta de telha vã; o visitador acrescentava que não tinha portas, mas somente “uma entrada que lhe deixaram quando fizeram as taipas”. Em 1533, a ermida que havia caído foi reconstruída, com paredes de taipa e telha vã. De taipa era também o altar.
A ermida de S. Roque, por sua vez, não tinha mais que a capela, “olivelada”, isto é forrada, de castanho, sendo as paredes e o altar de taipa. No entanto, anos depois os visitadores escreviam que “as paredes são de taipa de formigão”, com os cunhais e o portal de tijolo de alvenaria, decerto resultado de obras recentes que a beneficiaram em muito.
A ermida de S. Sebastião era então uma casa muito velha, com altar de alvenaria. Mas em 1533, a capela já tinha abóbada de nervura cruzada, em pedraria, e as paredes de “taipa com seu formigão” No entanto, o corpo não estava erguido além dos alicerces de pedra e barro, certamente esperando a conclusão das paredes em taipa.
Quanto à ermida de Santa Maria do Roxo, templo de mais nomeada, oferecia as duas soluções construtivas: a capela-mor, abobadada com arcos de pedraria, em cuja chave central estava gravada a cruz de Santiago, era de alvenaria, de pedra de xisto certamente; o corpo da ermida era coberto de telha vã, e, sem abóbada que exigisse maior sustentação, as paredes eram de taipa. Note-se que, tal como na matriz, também aqui o portal era de pedraria, o que só por si mostra uma maior importância.
O uso da taipa que no princípio do século XVI era tão usada em edifícios religiosos, não deixaria de o ser, por maioria de razões, nas casas de habitação. A vila de Alvalade seria nessa época uma vila de taipa, já nas casas, já nos muros de adros de igrejas, já nas cercas divisórias e protectoras das pequenas courelas e vinhas, enfim em todo o tipo de construções. Mais tarde, vemo-la, por exemplo, nos moinhos de vento.
Em 1758, depois do terramoto do 1.º de Novembro de 1755, escrevia o prior: A terra padeceo de ruina no dia do terramoto de mil setecentos e cinquenta e cinco principalmente nas igrejas de que as ermidas cairão demolidas e só a igreja matriz reparada a requerimento do pároco na mesa da consciência aonde pertence, a Misericórdia e Espirito Santo pello provedor da mesma (…) junto a esta villa tem duas ermidas, a de S.Pedro já há muitos annos demolida, outra a de S. Sebastião totalmente arruinada no dia do terramoto”. 
Efectivamente outros dos problemas da construção em taipa era a sua fraca resistência aos tremores de terra. O pároco de Milfontes atribuía a intervenção divina o facto de nenhuma das casas da vila ter caído apesar de serem de taipa.
De certo modo podemos dizer que em Alvalade, como em toda esta região, a taipa constituiu uma arquitectura popular, no duplo sentido da sua utilização pelas classes menos abastadas e da sua extraordinária difusão. No entanto, esta afirmação não completa o papel da taipa, usada em Alvalade em edifícios sobradados, alguns de notável dimensão e qualidade arquitectónica. O próprio edifício que a tradição diz ser casa de morada de juízes e escrivães, também de dois pisos, é de taipa.
No campo, muitos dos muros que rodeavam a pequena propriedade eram de taipa. Nos arredores das povoações e em zonas onde surgia a repartição da propriedade, caracterizada pela policultura e tratamento intensivo da terra, o hábito de cercar essas pequenas parcelas divulgou-se sobremaneira. Tratava-se de proteger, dos animais e das pessoas, as valiosas culturas (vinhas, hortícolas, olivais) existentes nessas parcelas, para o efeito “vedadas e coimeiras”. Em Colos, por exemplo, as próprias posturas municipais contemplavam a questão do “tapejo” de vinhas, hortas e, até, ferragiais. Estas taipas, de que ainda existem vestígios, marcavam a paisagem. Sobre cabouco de pedra, erguiam-se a cerca de um metro de altura. Muitas vezes, eram “bardadas”, isto é, encimadas por uma camada de mato, coberto de terra batida em ângulo; pranchas de cortiça substituíam por vezes o mato. Mato ou cortiça sobressaíam alguns centímetros para cada lado do muro, melhorando a protecção e dificultando a transposição por pessoas ou animais. Os viajantes estrangeiros reparavam nesses muros cobertos de cortiça e faziam-lhes menção nos seus livros de viagens. Parecem ter dado origem a certos topónimos com o elemento “taipa” (Vale das Taipas, por exemplo).
Naturalmente, a construção de casas e, onde os havia, de muros para cercas exigia extracção de terra. Quando esta se fazia em grande quantidade, a câmara era obrigada a regulamentar. Assim, em Colos, em 1709, uma postura proibia a extracção indiscriminada de terra em volta da vila, e reservava um local para o efeito. A respectiva coima era a dobrar quando o infractor fosse pedreiro ou servente.
A utilização do revestimento de cortiça em habitações e outros edifícios está bem testemunhada nesta região. Em 1517, a igreja de Milfontes tinha a sacristia forrada de cortiça, material que também era aplicado na do Cercal. Nesta, a nave, de paredes em pedra e barro, era “olivelada de cortiça toda pintada”, tal como o alpendre. Este material, não obstante as suas propriedades isolantes, seria considerado menos nobre do que a madeira de castanho, que revestia a capela-mor. Anos depois, em 1554, tanto a capela-mor como o corpo da igreja estavam emadeirados de castanho e encortiçados, possivelmente a madeira no tecto e a cortiça nas paredes. Note-se que se a cortiça era abundante no Cercal, o madeira de castanho também, pois no local havia um bom souto, que deixou sinal na toponímia.
Quando, em chuvosa noite de Janeiro de 1573, D. Sebastião passou em Colos, aqui pernoitou numas “casas térreas e pequenas”, certamente de taipa, com apenas dois compartimentos “habitáveis”, por serem forrados de cortiça. Região produtora de cortiça, o litoral alentejano usava este material, de que dispunha facilmente e em grande quantidade. Mas há notícias do seu uso noutras regiões. Por exemplo, no convento dos Capuchos em Sintra, cuja humidade foi comparada, por um viajante inglês, à do húmido convento do Cabo de São Vicente.
Encontramos uma outra curiosa utilização desta matéria-prima, no sítio de Baleizão, em Santo André. Aqui, podemos observar uma autêntica alvenaria de cortiça na empena do monte, com argamassa de terra e reboco de cal e areia. Portanto, a terra, a cortiça e a cal associadas.
Acrescente-se que certos materiais, como a cana, usados no forro de casas de habitação, poderão constituir solução construtiva mais recente. Pelo menos, não aparece referência na documentação consultada, o que, na realidade, não é comprovativo do seu não uso. De qualquer modo, eles inscrevem-se numa normal tendência de utilização de matéria-prima local. A propósito, ainda recordo, em Milfontes, uma casa (aliás, dita “cabana”), feita em junco, onde morava uma família.
A partir destes exemplos, carreados um pouco ao acaso, confirma-se que a utilização da terra na construção, através da técnica da taipa, teve forte presença na região. Ela era sobretudo usada em construções modestas, mas não deixava de o ser em edifícios mais prestigiosos como as igrejas. Também nestas, contudo, o seu uso ficou reservado a edificações mais singelas, parecendo clara a consciência das suas limitações quando se tratava de pedir às paredes maior resistência, como no caso das coberturas em abóbada. No entanto, como ainda podemos ver hoje, o uso da taipa não se terá reservado a edifícios de um só piso; em todo o caso, numa região em que predominavam largamente as pequenas construções térreas, o seu domínio foi notável, nalguns casos quase absoluto. De certo modo podemos dizer que aqui a taipa constituiu uma arquitectura popular, no duplo sentido da sua utilização pelas classes menos abastadas (embora não só) e da sua extraordinária difusão. Não é de esquecer igualmente a grande utilização da construção em taipa aplicada aos muros divisórios e protectores da pequena exploração agrícola na periferia de algumas povoações e noutros locais onde se desenvolveu a policultura e a repartição da propriedade. Frequentemente, a rede, mais ou menos densa, desses muros baixos, não rebocados, nem caiados, marcava a paisagem e indiciava o tipo de apropriação económica do espaço.  
Quanto ao revestimento de cortiça, não estando necessariamente associado à construção em terra, pareceu, contudo, interessante tratá-lo simultaneamente, uma vez que ambos surgem particularmente referenciados nas fontes e ambos constituem soluções construtivas baseadas em materiais locais. Nas duas circunstâncias referenciadas de utilização da construção em terra, a cortiça aparece utilizada em revestimento, num caso para melhorar a qualidade habitacional, e, no outro, como elemento de protecção e conservação. Isto, muito séculos antes da moderna utilização da cortiça e dos seus derivados. A potencialidade plástica de ambas as matérias-primas, as suas qualidades isolantes, portanto de protecção, a sua disponibilidade, a facilidade do seu uso, a ancestral relação com o homem e o consequente desenvolvimento de competências no seu aproveitamento estão na base do seu sucesso.                                                                                       
       
  António Martins Quaresma

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